Tempo
"Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o
tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide,
não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo,
uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou
lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.
Julgo, às
vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é
estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão
dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio
dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.
Emaranha-se-me a consciência se penso
nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado
está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal,
me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do
engano.
Chegam-me, então, pensamentos absurdos,
que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que
medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou
devagar. Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o
suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente
sincrónicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um
cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.
De duas rodas no mesmo eixo podemos
pensar que há sempre uma que estará mais adiante, ainda que seja fracções de
milímetro. Um microscópio exageraria este deslocamento até o tornar quase
inacreditável, impossível se não fosse real. E por que não há o microscópio de
ter razão contra a má vista? São considerações inúteis? Bem o sei. São ilusões
da consideração? Concedo. Que
coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E
é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma
pessoa, e tenho vontade de dormir."
Bernardo
Soares (Fernando Pessoa), in "Livro do Desassossego"